
É dificil deixar algumas coisas. Umas mais entrelaçadas em nós que outras... Mas quando se toma consciência disso, o nosso caminho poderá ficar mais claro. Este excerto é de Antônio de Oliveira, técnico em assuntos educacionais há 30 anos, sobre o vício do tabaco, mas pode aplicar-se a muitas outras coisas. Gostei de algumas considerações...
"Para se ilustrar a posição dos viciados, lembrar-se-ia, então, o conhecido verso de Ovídio
(Metamorfoses, VII, 20), nas palavras de Medéia: “Video meliora proboque, deteriora sequor.”
Esse verso é citado por vários clássicos, entre eles, F. Bacon, Spinoza, Locke. Vejo o que é
melhor e aprovo, e sigo o que é pior. Ou, na versão de Cláudio Manuel da Costa, de Vila Rica,
Inconfidente (“Prólogo ao Leitor”, in Obras): “É infelicidade, que haja de confessar que vejo e
aprovo o melhor, mas sigo o contrário na execução.” Fonte original e contextual do verso
ovidiano é a fala de Medéia: “Sim, compreendo quais males farei, mas minhas paixões são mais
fortes do que minha decisão; são elas as causas dos maiores males dos mortais.” (Eurípedes,
Medéia, linhas 1078-80). Trata-se do problema clássico da akrazía, fraqueza de vontade.
É do grande São Paulo. na Carta aos Romanos (7, 15), o desabafo: – Eu não entendo o que eu
faço; não faço o bem que desejo, mas o mal que não quero e aborreço, isso é o que eu faço.
Há turistas ou peregrinos que viajam à Índia ou a Santiago de Compostela, na Galiza
(Espanha), em busca de si mesmos, tentando evitar, após a morte, o epitáfio cunhado por
Fernando Pessoa: “Fui o que não sou”. Valéry se assustava ao perceber que aquilo que sabemos
pode acabar por se opor ao que somos. Vale dizer: poder nem sempre é querer. Isso de dizer que
querer é poder, é relativo, é mais uma frase de impacto, que funciona como estímulo. Santo
Agostinho (354-430) definiu o homem como vontade (“homines sunt voluntates”), mas força de
vontade depende de uma motivação muito forte, de uma autêntica metanóia, bem como do
desprendimento de algumas amarras psicofisiológicas (dependência física, por exemplo), cujo
desatamento às vezes até depende de um tratamento especial. Senhor e vítima de seus atos, o
homem assim dividido é, hoje, objeto e sujeito da psicanálise. O poder pode querer. Mas entre o
querer e o poder existe uma fossa: “between thought and action falls the shadow...” (T.S. Eliot)
O inferno está cheio de boas intenções. O provérbio foi atribuído a são Bernardo por são
Francisco de Sales: “Le proverbe tiré de notre saint Bernard, ‘L’enfer est plein de bonnes
volontés ou désirs’” (Carta 74).
Afinal, motivação é a prevalência de um motivo sobre outro ou outros. Somente a partir do
momento em que me conscientizo de que fumar é bom, não fumar é melhor, é possível o
processo de transição, no caso, ou de realização de um projeto. De acordo com uma expressão
popular corrente em Portugal, o que não quero é o que não posso; o que não posso é o que não
quero.
Neste mundo vivem-se vários mundos. E é muito difícil, do “nosso mundo”, compreender
outros mundos. Um rico não sabe o que é o mundo da pobreza, um cidadão livre não sabe o que
ser escravo ou ser presidiário. Uma pessoa tímida não sabe o que é destemor. Pessoas de
iniciativa, empreendedoras, verberam os acomodados. Um alcoólatra se pergunta como pode
alguém viver sem ingerir bebida alcoólica. O abstêmio, por sua vez, não entende a necessidade
que alguém tem de beber até se embriagar. Quem habitualmente faz uso de drogas (é difícil não
fazer uso de drogas senão habitualmente), nem vislumbra outro mundo. Quem é magro e esbelto não imagina o que é ter complexo de obesidade.
Daí não se conclui que o vício não deva ser combatido. A questão continua como combatê-lo.
Sem dúvida, vício é vício, e incomoda tanto os viciados não-assumidos como os não
viciados. Entretanto, parece que, quanto à maneira de combater os chamados vícios, do ponto de
vista pedagógico, melhor fora mostrar os aspectos positivos da virtude, ou seja, do hábito oposto
ao contraído pelo não viciado. É claro que virtude não é deixar de fazer, mas, no caso, o deixar
de praticar o vício poderia abrir espaços para a prática de outros valores. Pedro Bloch escreveu,
sob o título “Receita de vida” (revista Manchete, 12 nov. 1966): “Não nadar em piscina quando
se tem mar à frente. Não salvar peixe no balde, mas devolvê-lo ao mar.” (...) “Saber que, muitas
vezes, nossa jaula somos nós mesmos, que vivemos polindo as grades em vez de libertar-nos.”
Em O Castelo, Kafka narra a situação da personagem que passa toda a vida inutilmente
esperando que a porta do castelo se abra, sem se dar conta de que, na verdade, a porta já lhe
estava aberta. "
Muitas vezes queremos e não podemos, mas outras vezes podemos... e na verdade não queremos... e confundimos isso com "não conseguir"? Talvez... mas só quando não somos sinceros connosco. Utópicamente, gosto mais de acreditar que querer é realmente poder, porque no mínimo dos mínimos, pensar assim dá-nos força.